quarta-feira, 20 de maio de 2015

Assalto

Começa com um susto. Olhos estufados quase saltando a face já pálida. Diante de uma tragédia iminente, inicia a sessão do famoso filme em câmera lenta com duração de segundos de uma vida toda. Sua memória percorreu todos os labirintos possíveis do seu cérebro. Em um deles estava o dia em que aprendeu a andar de bicicleta. O joelho ferido evidenciava a persistência que o Merthiolate evidenciaria como dor mais tarde. Lembrou de como sentia vontade de brincar de boneca quando via sua irmã brincando com as amigas da escola, mas sentia vergonha e a repressão atemporal de uma sociedade inteira pesando em suas costas. E então quando ninguém mais estava por perto, penteava os cabelos da Barbie encantado com o fascínio que a boneca sempre exercera nas mentes infantis. Pôde sentir de uma forma sinestésica o cheiro do bolo de cenoura que sua avó materna fazia. Sentia falta do carinho e de palavras doces vindas dela, mas o bolo de cenoura feito especialmente para ele com a única finalidade de evidenciar amor, suplantava qualquer carência afetiva. Lembrou do dia em que descobriu a inexistência do papai Noel e de quando teve o primeiro orgasmo. Recordou a felicidade que sentiu no dia do resultado do vestibular no qual foi classificado. Pensou em deus. O medo já havia paralisado seu corpo, em questão de tempo, sua mente também. As farras com os amigos, a musica preferida, o abraço de sua mãe, os sermões do pai, o amor mal resolvido do passado, a viagem dos sonhos, o livro de cabeceira, o mestrado não concluído e naquele momento apenas a frouxidão da energia do poste como testemunha. Repetiu três vezes o nome de deus enquanto desviava o olhar dos olhos vermelhos de ódio à sua frente. Ódio vermelho. Cano metálico & gelado pressionando violência contra sua cabeça. Mãe - o último nome que proferiu.

(Escrito em 29/09/2009; Interpretado no Teatro 4 de setembro no espetáculo PI-Ó-IR no mesmo ano)