sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Café com leite


Ela ficava sempre fora das brincadeiras mais complexas, e quando participava, era faz de conta. Ganhou o apelido de café com leite porque era muito pequena ainda para ser incluída nas brincadeiras de luta, para se aventurar pulando muros das casas ou para colher as frutas dos pés nos quintais alheios. Só tinha seis anos, não dava para brincar com os meninos mais velhos. Quando fizesse 8 anos seria incluída em todas as aventuras - seu irmão prometera. Sua função era ficar em casa, aguardando o horário de início do desenho Cavalheiros do Zodíaco. E quando finalmente iniciava, saía gritando na rua:

- COMEÇOOOOU!

E todos se reuniam na sala da sua casa para assistir ao desenho. Sentia-se útil com essa missão semanal, mas queria mesmo era correr na rua com os meninos homens. Não tinha amiguinhas na vizinhança, de criança, por ali, somente os quatro amigos do seu irmão. Não gostava de pentear os cabelos, gostava de andar com os pés descalços e tinha os joelhos marcados por quedas. Uma criança feliz dentro da sua liberdade assistida.  Amava brincar ao ar livre com o seu cachorro Bidu, dava nome às plantas e aos insetos. Pura vida! Mas certo dia, ousaram uma intromissão à sua liberdade. Enquanto comia o seu pacote de petisco Raul Lopes, o seu preferido, e lambia os dedos sujos de farelo, uma mulher da vizinhança, esboçando repulsa, gritou: “Que menina nojenta e sem modos, sai daqui!”.  Café com leite ficou assustada, não entendeu muito bem o motivo de tanta raiva. Estaria fedendo? Suja? Ficou fugidia. Esquivou-se. Sentiu vergonha de si mesma. Evitou a rua naquela semana. Só tinha seis anos, mas sentiu a tristeza sugar a sua energia de criança alegre e espontânea. Passou a evitar adultos que não fossem seus pais, chegou à conclusão: ficar perto de outras crianças é mais seguro. De fato, era mais seguro ser feliz sendo quem ela realmente era: uma criança livre & ainda café com leite - inclusive, café com leite para lidar com o ódio gratuito de adultos que já morreram por dentro.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Como ousas?

 

você sempre diz que eu tenho um coração bonito

é clichê?

é fofo com pitadas de cafonice

o amor é isso.

estou nesse mundo há pouco mais de três décadas,

posso definir o que é o amor usando ponto final

dentre todas as peculiaridades que falam sobre quem eu sou

você cismou de achar que eu tenho um coração bonito

dentre todas as coisas lindas que você já disse

você também me disse algo horrível

sem dó

ou piedade

me chamou de DEDO PODRE

como ousas?

acusou-me de escolher as piores pessoas

mas e você, seu puto?

eu te escolhi

"o destino não é uma escolha" 

como ousas?