Ela
ficava sempre fora das brincadeiras mais complexas, e quando participava, era
faz de conta. Ganhou o apelido de café com leite porque era muito pequena ainda para ser incluída nas brincadeiras de
luta, para se aventurar pulando muros das casas ou para colher as frutas
dos pés nos quintais alheios. Só tinha seis anos, não dava para brincar com os
meninos mais velhos. Quando fizesse 8 anos seria incluída em todas as aventuras
- seu irmão prometera. Sua função era ficar em casa, aguardando o horário de
início do desenho Cavalheiros do Zodíaco. E quando finalmente iniciava, saía
gritando na rua:
-
COMEÇOOOOU!
E todos
se reuniam na sala da sua casa para assistir ao desenho. Sentia-se útil com essa missão semanal, mas queria mesmo era correr na rua com os meninos homens.
Não tinha amiguinhas na vizinhança, de criança, por ali, somente os quatro
amigos do seu irmão. Não gostava de pentear os cabelos, gostava de andar com os
pés descalços e tinha os joelhos marcados por quedas. Uma criança feliz dentro
da sua liberdade assistida. Amava
brincar ao ar livre com o seu cachorro Bidu, dava nome às plantas e aos insetos. Pura vida! Mas certo dia, ousaram uma intromissão à sua liberdade. Enquanto comia o seu
pacote de petisco Raul Lopes, o seu preferido, e lambia os dedos sujos de
farelo, uma mulher da vizinhança, esboçando repulsa, gritou: “Que menina
nojenta e sem modos, sai daqui!”. Café
com leite ficou assustada, não entendeu muito bem o motivo de tanta raiva.
Estaria fedendo? Suja? Ficou fugidia. Esquivou-se. Sentiu vergonha de si mesma.
Evitou a rua naquela semana. Só tinha seis anos, mas sentiu a tristeza sugar a sua energia
de criança alegre e espontânea. Passou a evitar adultos que não fossem seus pais, chegou à conclusão: ficar
perto de outras crianças é mais seguro. De fato, era mais seguro ser
feliz sendo quem ela realmente era: uma criança livre & ainda café com leite -
inclusive, café com leite para lidar com o ódio gratuito de adultos que já morreram por dentro.